Photo: Fabíola Lourenço |
Apertou o tubo de pasta de dentes
com toda a força do seu ser. Não adiantou muito. “Merda, preciso ir ao
mercado”, pensou. Levou a escova à boca, abriu o lixeiro, jogou fora o tubo
vazio e encarou sua imagem no espelho. “Merda, também preciso cortar meu
cabelo”, começou a escovar os dentes, ainda extremamente incomodado com o seu
cabelo, que costumava ficar ainda mais feio e bagunçado quando crescia. Não que
se importasse com o que as pessoas pensavam sobre o seu cabelo. Não precisava
disso. Mas a partir do momento em que ele se incomodava com algo, tinha que
mudar. Precisava. Necessitava. Mais que oxigênio. Sempre foi assim e tinha
plena certeza de que isso não mudaria tão cedo.
Era seguro também, principalmente
das suas incertezas. Conhecia a si mesmo bem demais para ter dúvidas, como
essas que pessoas normais normalmente têm. Ele era diferente. Sabia dos seus
medos, seus limites. Seus sentimentos, inclusive, eram bem medidos e
etiquetados, organizados em ordem alfabética em uma seção especial no seu cérebro.
Sempre foi assim e tinha plena certeza de que sempre seria.
Precisava de pouco para viver
bem. E vivia afirmando que vivia bem, “muito bem, obrigado. Tenho livros, boa
música, bebidas na geladeira e comida na dispensa, pra quê mais?”. Era sempre
assim. “Droga, mas acabou o creme dental, provavelmente a comida deve estar
acabando também. É, vou ter que ir ao mercado”, pensou dessa vez.
Não falava mais do que o
essencial. Odiava papo furado. E não foi por falta de tentativa. Tentara
bastante ser comunicativo e simpático com as pessoas. Até os 15, quando
percebeu que isso não dava certo pra ele. Cansara. Desde então, apenas o
básico. Falava o básico, fazia o básico, vivia o básico. E ele estava bem com
isso.
Algumas pessoas não aceitavam e
tampouco entendiam seu jeito de ser. Mas ele não se preocupava muito com isso,
porque também não entendia muito bem esse jeito de ser das pessoas, bastante
diferente do dele. Pouco importava. Ele só precisava ir ao mercado e pronto.
Merda, ele odiava ir ao mercado.
3 comentários:
Às vezes, é tentador ser como você descreveu: apenas básico. Acontece que esse conceito de existir e nada mais acaba perturbando quem passa muito tempo nesse estado. Você olha ao redor e vê tanta gente sendo boa ou extraordinária que ser básico apenas acaba cansando. E tenho certeza que quando nos permitimos ser além de disso, descobrimos que continuamos tendo medos e dúvidas e que isso é o que nos move.
Nossa, poderia passar o resto da tarde pensando e pensando nas questões que você levantou. Muito bom!
Concordo com a Deyse chega um momento que o básico já não é o bastante. Se jogar às vezes faz bem.
Já diz o velho ditado, quem não arrisca não petisca. rs
Beijos
UAU. Está aí um bom tema para passar o resto do dia pensando a respeito. No fundo, se pararmos para pensar, o essencial mesmo é somente o básico. Com um pouco de esforço todos conseguem se virar bem somente com o que é necessário. Só que hoje o mundo está tão lotado de possibilidades, de curiosidades, de gente, de escolhas que o básico é quase sempre a última escolha de todo mundo. Pra que me contentar com o simples se o sofisticado está em todos os lugares gritando meu nome? O problema é que eu realmente acho que a felicidade está nas coisas simples, mas a vontade de se aventurar pelo mundão é tentadora demais. Realmente complicado.
Adorei o texto, ficarei refletindo nessa questão durante um bom tempo. haaha. Abraços!
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