27 de jan. de 2013

A vida dele

Photo: Fabíola Lourenço

Apertou o tubo de pasta de dentes com toda a força do seu ser. Não adiantou muito. “Merda, preciso ir ao mercado”, pensou. Levou a escova à boca, abriu o lixeiro, jogou fora o tubo vazio e encarou sua imagem no espelho. “Merda, também preciso cortar meu cabelo”, começou a escovar os dentes, ainda extremamente incomodado com o seu cabelo, que costumava ficar ainda mais feio e bagunçado quando crescia. Não que se importasse com o que as pessoas pensavam sobre o seu cabelo. Não precisava disso. Mas a partir do momento em que ele se incomodava com algo, tinha que mudar. Precisava. Necessitava. Mais que oxigênio. Sempre foi assim e tinha plena certeza de que isso não mudaria tão cedo.

Era seguro também, principalmente das suas incertezas. Conhecia a si mesmo bem demais para ter dúvidas, como essas que pessoas normais normalmente têm. Ele era diferente. Sabia dos seus medos, seus limites. Seus sentimentos, inclusive, eram bem medidos e etiquetados, organizados em ordem alfabética em uma seção especial no seu cérebro. Sempre foi assim e tinha plena certeza de que sempre seria.

Precisava de pouco para viver bem. E vivia afirmando que vivia bem, “muito bem, obrigado. Tenho livros, boa música, bebidas na geladeira e comida na dispensa, pra quê mais?”. Era sempre assim. “Droga, mas acabou o creme dental, provavelmente a comida deve estar acabando também. É, vou ter que ir ao mercado”, pensou dessa vez.

Não falava mais do que o essencial. Odiava papo furado. E não foi por falta de tentativa. Tentara bastante ser comunicativo e simpático com as pessoas. Até os 15, quando percebeu que isso não dava certo pra ele. Cansara. Desde então, apenas o básico. Falava o básico, fazia o básico, vivia o básico. E ele estava bem com isso.

Algumas pessoas não aceitavam e tampouco entendiam seu jeito de ser. Mas ele não se preocupava muito com isso, porque também não entendia muito bem esse jeito de ser das pessoas, bastante diferente do dele. Pouco importava. Ele só precisava ir ao mercado e pronto. Merda, ele odiava ir ao mercado.

3 comentários:

Deyse Batista disse...

Às vezes, é tentador ser como você descreveu: apenas básico. Acontece que esse conceito de existir e nada mais acaba perturbando quem passa muito tempo nesse estado. Você olha ao redor e vê tanta gente sendo boa ou extraordinária que ser básico apenas acaba cansando. E tenho certeza que quando nos permitimos ser além de disso, descobrimos que continuamos tendo medos e dúvidas e que isso é o que nos move.
Nossa, poderia passar o resto da tarde pensando e pensando nas questões que você levantou. Muito bom!

Dani disse...

Concordo com a Deyse chega um momento que o básico já não é o bastante. Se jogar às vezes faz bem.
Já diz o velho ditado, quem não arrisca não petisca. rs
Beijos

Carolinda disse...

UAU. Está aí um bom tema para passar o resto do dia pensando a respeito. No fundo, se pararmos para pensar, o essencial mesmo é somente o básico. Com um pouco de esforço todos conseguem se virar bem somente com o que é necessário. Só que hoje o mundo está tão lotado de possibilidades, de curiosidades, de gente, de escolhas que o básico é quase sempre a última escolha de todo mundo. Pra que me contentar com o simples se o sofisticado está em todos os lugares gritando meu nome? O problema é que eu realmente acho que a felicidade está nas coisas simples, mas a vontade de se aventurar pelo mundão é tentadora demais. Realmente complicado.
Adorei o texto, ficarei refletindo nessa questão durante um bom tempo. haaha. Abraços!